Enquanto 17 estados brasileiros se mobilizam na maior ofensiva já registrada contra o desmatamento ilegal da Mata Atlântica, Mato Grosso do Sul vive a iminência de um colapso ambiental: cidades enfrentam até 100 dias sem chuva, o calor ultrapassa os 40 °C e incêndios florestais se alastram por reservas ambientais como o Parque Nacional da Serra da Bodoquena. O Brasil, mais uma vez, assiste os efeitos do colapso climático e da devastação ambiental.
A devastação da Mata Atlântica, um dos biomas mais ricos e ameaçados do planeta, é histórica e continuada. O que era um cinturão verde que se estendia por mais de 1,3 milhão de km² hoje sobrevive em fragmentos — cerca de 12,4% da vegetação original, segundo dados da Fundação SOS Mata Atlântica. Em 2024, o cenário agravou-se: 19,5 mil hectares foram destruídos ilegalmente, o equivalente a 27 mil campos de futebol, segundo levantamento da Operação Mata Atlântica em Pé.
Coordenada pelo Ministério Público de Minas Gerais e pela Associação Brasileira dos Membros do Ministério Público de Meio Ambiente (Abrampa), a ação envolve 17 estados e utiliza imagens de satélite do MapBiomas e do Atlas da SOS Mata Atlântica para monitorar, embargar e punir os responsáveis por crimes ambientais. Foram aplicados R$ 143,1 milhões em multas — o maior valor desde que a operação foi criada.
“A união entre órgãos públicos e o uso de tecnologia de ponta têm sido fundamentais para conter o avanço da destruição”, afirmou Alexandre Gaio, promotor de Justiça do Paraná e coordenador do projeto pela Abrampa.
No entanto, a aplicação de multas e embargos encontra limites em um sistema político frequentemente leniente com os interesses do agronegócio predatório e com práticas clientelistas enraizadas. Como lembrou o geógrafo Carlos Walter Porto-Gonçalves (UFF), “não se trata de um conflito entre preservação e desenvolvimento, mas entre dois projetos de país”.
Calor extremo, estiagem e ar irrespirável
Enquanto satélites identificam desmatamentos ilegais, o chão do Mato Grosso do Sul se incendeia — literalmente. Com cidades como Porto Murtinho enfrentando quase 100 dias sem chuvas significativas, a umidade relativa do ar tem atingido níveis inferiores a 12%, abaixo dos índices registrados em desertos como o Saara.
“A situação é crítica e se agravará nos próximos dias”, alertou o Centro de Monitoramento do Tempo e do Clima (Cemtec), que classificou a combinação entre estiagem prolongada, temperaturas elevadas e baixa umidade como o chamado triângulo do fogo — cenário ideal para queimadas de grandes proporções.
O calor ultrapassa os 38 °C em diversas cidades, e a previsão é de que as temperaturas subam ainda mais. A região oeste, incluindo Corumbá e Miranda, pode até receber chuvas isoladas, mas isso não será suficiente para reverter o quadro alarmante. As consequências vão além da natureza: o sistema de saúde já sente os reflexos do tempo seco com aumento de internações por doenças respiratórias, especialmente entre crianças e idosos.
Segundo o pneumologista Henrique Britto, a população deve evitar atividades ao ar livre, manter-se hidratada e umidificar os ambientes. “Estamos lidando com uma condição que não é apenas desconfortável — ela é perigosa para a saúde”, disse à imprensa local.
Entre cânions milenares e a ameaça do fogo
No Parque Nacional da Serra da Bodoquena, unidade de conservação federal que abriga rios de águas cristalinas, cânions milenares e fauna endêmica, o fogo avança desde o dia 12 de setembro. As chamas ameaçam áreas próximas ao Rio Salobra, importante ponto turístico da região. Brigadistas do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) e bombeiros atuam dia e noite para conter os focos — ainda sem sucesso definitivo.
“Conseguimos isolar algumas frentes, mas o perigo continua. O relevo acidentado e o vento forte tornam o combate extremamente difícil”, explicou Sandro Pereira, chefe do parque. A ação ocorre a pé, com bombas costais e abafadores, diante da impossibilidade de uso de viaturas e o difícil acesso à região montanhosa.
Até o momento, a área central da unidade federal não foi atingida, mas o risco permanece elevado. A origem do fogo ainda não foi identificada, mas começou em uma propriedade vizinha, o que reforça a tese de que se trata de um incêndio provocado — ainda que acidentalmente.
O custo da omissão
A recorrência desses eventos não é novidade. A crise ambiental brasileira é cíclica e sintomática: falta prevenção, sobra reação. Em 2020, imagens do Pantanal em chamas rodaram o mundo, e o Brasil tornou-se símbolo do descaso com seus biomas. A Mata Atlântica, por sua vez, enfrenta destruição contínua há mais de cinco séculos — desde os primeiros ciclos econômicos coloniais até a recente expansão agropecuária.
O problema, como aponta a historiadora Lilia Moritz Schwarcz (USP), é estrutural: “o Brasil se formou sob a lógica da exploração e não da preservação”. Essa herança ainda rege parte significativa das políticas públicas ambientais. A aparente contradição entre crescimento econômico e conservação ambiental é alimentada por uma retórica que ignora o valor econômico da biodiversidade, do turismo ecológico e da segurança hídrica.
Em 2023, o Tribunal de Contas da União já alertava para o sucateamento do Ibama e do ICMBio, além da insuficiência de brigadistas, viaturas e estrutura para prevenção e combate a incêndios. As ações emergenciais, como a Operação Mata Atlântica em Pé, são louváveis — mas insuficientes se não acompanhadas de reformas estruturais, investimento público e vontade política.
Entre a vida e a fumaça
A situação em Mato Grosso do Sul é o retrato de uma crise mais ampla, que une o colapso ambiental ao enfraquecimento institucional. A destruição de biomas como a Mata Atlântica, a Amazônia e o Cerrado é a ponta visível de um processo que envolve grilagem, especulação imobiliária, monocultura extensiva e ausência do Estado. O resultado? Um território cada vez mais seco, menos habitável, mais desigual.
A socióloga Marilena Chaui resume bem o ponto quando afirma que “a degradação ambiental é também a degradação da cidadania”. Quando um parque nacional arde, arde também o direito coletivo ao futuro. Quando um bioma é devastado, é a democracia que se torna mais frágil — porque ela exige equilíbrio entre interesses econômicos, justiça social e proteção ambiental.
Enquanto isso, o Brasil ainda parece escolher entre o lucro imediato e a preservação da vida. A natureza, no entanto, não é negociável — e, como agora se vê, ela começa a cobrar a conta.











