Nos últimos tempos, um debate vem ganhando força no futebol brasileiro. A discussão gira em torno do fair play financeiro e é motivada pela entrada no país de grandes grupos econômicos, que controlam inúmeros clubes ao redor do mundo.
Por muitas décadas, esse assunto costumava passa ao largo das preocupações daqueles que comandam o destino de nosso futebol. Sobretudo porque, no Brasil, sempre imperou a lógica do “quem pode mais chora menos”, em que clubes maiores e mais estruturados sempre fizeram fazer seu poderia econômico na hora de contratar e definir salários de jogadores e técnicos.
Em 2024, porém, dirigentes de equipes tradicionais viram a luz amarela acender e passaram a cobrar fair play financeiro. O debate ficou em evidência, ironicamente, graças a declarações do dono da Sociedade Anônima do Futebol (SAF) do Botafogo, John Textor (ele próprio um grande investidor estrangeiro), alertando para o suposto desequilíbrio financeiro que o City Football Group poderia acarretar para o futebol brasileiro.
Atualmente, o grupo com sede nos Emirados Árabes Unidos controla o Bahia, que não conquista um título nacional da primeira divisão desde 1988, mas se destacou com contratações pesadas (como a Éverton Ribeiro) neste ano.
A contratação do atacante holandês Memphis Depay pelo Corinthians ajudou a acalorar ainda mais a discussão. Isto porque o Flamengo havia tentado trazer o jogador, com uma proposta salarial inferior aos R$ 3 milhões oferecidos pelo clube paulista, cuja dívida ultrapassa R$ 2 bilhões.
O presidente da equipe carioca veio a público exigir fair play financeiro no futebol brasileiro, ganhando o apoio da presidente do Palmeiras, Leila Pereira, que também disse ser favorável à limitação da folha salarial.
Em meio a toda essa discussão em torno de fair play financeiro, envolvendo situações tão distintas, muitas pessoas têm dificuldades de entender o que essa expressão significa e como ela se aplica na prática, nos locais onde está em vigor. A seguir, tentaremos explicar a você como funciona essa regra e até que ponto ela pode ser efetiva.
O que é fair play financeiro?
A nova palavra de ordem dos dirigentes de Palmeiras e Flamengo que, por ironia, vinham dominando o futebol brasileiro graças às contratações milionárias e folhas salariais muito acima da média adotada pelos adversários, tem origem na expressão fair play, que significa “jogo justo”.
Esse termo define atitudes adotadas por atletas ou equipes dentro de campo, visando não levar vantagem indevida sobre um adversário. O gesto mais conhecido de fair play talvez seja quando um jogador chuta a bola para a linha lateral, quando vê um rival caído devido a alguma contusão.
Fair play financeiro parte da ideia de que o jogo deve ser justo também quando o assunto é dinheiro, de modo a que uma equipe não utilize de seu poderio econômico para desequilibrar a disputa nas competições.
Isso inclui o impedimento ao chamado doping financeiro, que seria quando fontes externas ao clube injetam dinheiro nele, visando ampliar sua competitividade.
Finanças saudáveis
Mas essa regra vai, pelo menos em tese, muito além da simples limitação de gastos com salários e contratações. Ela parte do conceito fundamental que visa garantir a saúde financeira dos times, para que não gastem além do que arrecadem, o que colocaria em risco sua sobrevivência a longo prazo.
Para se entender o conceito, podemos analisar as finanças de grandes clubes brasileiros. De acordo com o Relatório Convocados 2024, feito em parceria com a Outfield e patrocínio da Galapagos Capital, Flamengo e Palmeiras foram as duas equipes que mais investiram elenco, entre 2019 e 2023, com gastos respectivos de R$ 1,129 bilhão e R$ 828 milhões.
No ano passado, o Flamengo foi disparado quem mais investiu em elenco profissional, com um total de R$ 280 milhões. Em segundo lugar veio o Botafogo de Textor, com R$ 203 milhões, acima do Palmeiras, que destinou R$ 173 milhões para essa finalidade. Por outro lado, o Corinthians gastou apenas R$ 49 milhões na contratação de jogadores.
Conforme já foi dito acima, os gastos absolutos de uma equipe com elenco representam um fator relevante a ser analisado nessa equação, mas não o único. No caso do Flamengo, por exemplo, a relação entre a dívida líquida e as receitas totais ficou em 0,3, no ano passado, ao passo que no Corinthians esse índice chega a dois, fazendo o clube paulista ocupar a sexta pior posição nesse quesito, entre os 20 times que disputaram o Brasileirão da Série A de 2023.
Ou seja, quando um clube na condição do Flamengo contrata pesado, ele não necessariamente está abusando do fair play financeiro. Já quando um time altamente endividado amplia de maneira significativamente sua folha salarial, ele pode estar indo em desacordo a esse princípio.
Como o fair play financeiro funciona no futebol europeu?
Fair play financeiro é uma discussão que passou a ganhar força na Europa sobretudo a partir dos anos 2000, na medida em que determinados clubes de mercados como Itália, Inglaterra, Alemanha, França e Espanha passaram a concentrar em seus elencos as principais estrelas do futebol mundial, criando um fosso de competitividade dentro das ligas nacionais e até mesmo em torneios continentais, como a Champions League.
Em 2009, a União das Associações Europeias de Futebol (Uefa) implantou as regras de fair play financeiro, que vigoram até hoje no continente. Os clubes devem emitir declarações periódicas, comprovando que não atrasam pagamentos de salários. Elas também estabelecem um limite de prejuízos € 60 milhões por três temporadas, mas esse teto é flexível e pode chegar a € 90 milhões.
Em geral, a observância da regra tende a ser rígida, como em 2019, quando a Corte Arbitral do Esporte (CAS, na sigla em inglês) decidiu excluir o Milan da Europa League, por ultrapassar em € 121 milhões o limite de prejuízos estabelecido pela Uefa, no acumulado das temporadas 2015/2016, 2016/2017 e 2017/2018. No ano passado, foi a vez da Juventus ser barrada da Conference League, por violar o fair play financeiro.
As regras da Uefa podem parecer rígidas, mas não impediram, na prática, o surgimento dos chamados clubes-estado, que são as equipes compradas por países do Oeste Asiático, casos de PSG, pertencente à família real do Catar, ou de Manchester City, controlado pelo City Football Group, que, por sua vez, é comandado pelo governo dos Emirados Árabes Unidos.
O Manchester City chegou a ser excluído pela Uefa da Champions League de 2020, sob o argumento de que o clube teria violado, entre 2012 e 2016, as regras de fair play financeiro, inflando seus contratos de patrocínio. No fim das contas, porém, a equipe conseguiu reverter a decisão na CAS e ficou livre de punições mais graves, exceto da multa por não haver colaborado com a investigação.
Neste caso, a mesma mão que pesou contra clubes tradicionais que estavam na baixa (como Milan e Juventus) acabou por ser carinhosa no trato com o principal representante do City Football Group.
Manchester City
Na Premier League, a regra de fair play estabelece o limite de £ 15 milhões de prejuízo, durante três temporadas consecutivas. Caso haja aporte de acionistas, o total aceito pode chegar a £ 105 milhões.
A Premier League é palco daquele que foi apelidado pela imprensa de “julgamento do século”, já que pode tanto reafirmar e enrijecer a aplicação das regras de fair play financeiro quanto abrir as portas para que o poderio econômico dos grandes grupos internacionais prevaleça.
Ganhador de seis das últimas sete edições do campeonato, o Manchester City é acusado de cometer 115 violações do regulamento da Premier League, sendo 80 relacionadas a fair play financeiro. Os abusos teriam ocorrido entre 2009 e 2018.
O caso eclodiu depois de uma reportagem da revista alemã Der Spiegel, que revelou uma troca de mensagens entre executivos do City Football Group, mostrando que os valores do patrocínio da Etihad Airways (companhia aérea pertencente ao governo dos Emirados Árabes) teriam sido elevados artificialmente, com o objetivo de camuflar investimentos de Sheikh Mansour no clube inglês.
As punições, se vierem, podem ser severas, indo desde a perda de pontos na competição, anulação de partidas e até mesmo a exclusão do clube da Premier League.
Resta saber, porém, se a Liga estará disposta a aplicar à risca à regras. Em outros casos polêmicos envolvendo o City Football Group, o que se viu foi a flexibilização das normas, caso, por exemplo, da recente decisão tomada pela Uefa, que permitiu as participações de Girona e Manchester City na Champions League 2024/2025, mesmo com os dois clubes integrando o mesmo grupo econômico.
LaLiga
A LaLiga, da Espanha, é outra competição que volta e meia se torna cenário de polêmicas envolvendo fair play financeiro. Ali, os clubes podem gastar com salários até 70% da renda orçada. As normas proíbem que a dívida líquida das equipes seja superior às receitas totais.
Além disso, a diferença entre o valor gasto com contratações e o obtido com a venda de atletas não pode ser maior que € 100 milhões ao ano, em cada clube.
A principal diferença da LaLiga em relação à Uefa é que, na Espanha, o período de apuração é menor, de apenas 12 meses. Em 2020/2021, quando a pandemia da Covid-19 paralisou campeonatos, fechou estádios e forçou à redução nos valores pagos em contratos comerciais e de mídia, o Barcelona registrou queda acentuada nas receitas, ficando sem condições de justificar os gastos com o salário de Lionel Messi, seu principal astro.
Mesmo que cortasse em 50% a quantia paga ao craque argentino, o Barcelona ficaria em desacordo com as regras de fair play financeiro da LaLiga. Dessa forma, Messi acabou indo para o PSG, dando um fim traumático à sua relação com o clube catalão.
A partir daí, o Barcelona tem convivido com uma situação financeira complicada e voltou a ter problemas com o fair play financeiro. No ano passado, a LaLiga anunciou flexibilização nas regras, permitindo a clube que excederam o o limite de gastos na última temporada pudessem utilizar 50% do que conseguissem economizar ou arrecadar na contratação de novos jogadores.
Estados Unidos
No universo do futebol, ainda que sejam aparentemente rigorosas, as regras de fair play financeiro não conseguem coibir o desequilíbrio financeiro e as disparidades técnicas entre as equipes.
Já as principais ligas esportivas dos Estados Unidos carregam, em sua concepção, dispositivos que visam garantir uma maior igualdade financeira entre as equipes.
A National Football League (NFL) realiza a divisão igualitária das receitas compartilhadas entre as 32 franquias. Em 2023, cada uma delas recebeu US$ 402,3 milhões dessa fonte de recursos.
As normas também definem teto salarial para as equipes, que, nesta temporada, está na casa do US$ 250 milhões. Quem ultrapassa o limite é obrigado a realizar cortes no elenco ou renegociar salários.
As normas da NFL também garantem às equipes com piores colocações na temporada anterior a prioridade no draft do período seguinte. Esse modelo de contratação de jovens atletas foi instituído pela Liga em 1936, quando Stan Kotska, principal destaque do futebol americano universitário da época, resolveu promover um leilão para assinar com uma equipe profissional, já que era assediado por quase todas as franquias da competição.
Bert Bell, então dono do Philadelphia Eagles, propôs um sistema em que a equipe menos competitiva teria prioridade na escolha das jovens promessas. Seu argumento era de que não conseguia atrair bons jogadores e, consequentemente, não montava times vitoriosos nem vendia ingressos.
No país da livre concorrência, a regra da solidariedade prevaleceu e se tornou regra em outras ligas, caso da National Basketball Association (NBA), onde as equipes não classificadas para os play-offs também têm vantagem ao participar do draft. Neste caso, porém, a ordem de escolha é definida por sorteio.
A NBA também possui teto salarial, que, nesta temporada está em US$ 140,5 milhões, por equipe. Caso, porém, alguma franquia ultrapasse esse valor, ela será penalizada com a chamada luxury tax, uma forma de punição mais flexível, já que garante meios legais de um time burlar a norma sem punições severas fora de quadra.
Com a luxury tax, um time tem de pagar US$ 1,5 para cada dólar gasto além do teto salarial. Na temporada 2023/2024, o Golden State Warriors, um dos times mais bem-sucedidos da NBA nos últimos anos, gastou US$ 176,9 milhões com essa taxa.
Em média, 25% dos times da Liga pagam a luxury tax, com os valores sendo redistribuídos entre todas as franquias. Vale lembrar que a a flexibilidade trazida pela taxa não é irrestrita. Os custos aumenta, em caso de reincidência.
O limite que cada time pode gastar além da luxury tax é conhecido como segundo apron, dispositivo introduzido em 2023 e que, se não for respeitado, pode acarretar em diversas restrições para quem violar a regra.