A defesa de Jair Bolsonaro (PL) apresentou ontem (13) suas alegações finais no Supremo Tribunal Federal (STF), negando veementemente qualquer tentativa de golpe de Estado e acusando seu ex-ajudante de ordens, o tenente-coronel Mauro Cid, de ser um “mentiroso contumaz”. A peça jurídica, embora tecnicamente estruturada, aposta na negação sistemática dos fatos já comprovados no processo — incluindo a existência de uma minuta golpista, reuniões com militares para inviabilizar a posse de Lula e uma campanha orquestrada contra a legitimidade do sistema eleitoral.
A estratégia da defesa é clara: transformar uma das maiores ameaças à democracia brasileira desde 1964 em um simples “brainstorm”. No documento, Bolsonaro se apresenta como um presidente que respeitou o processo de transição, nunca incentivou o uso da força e apenas exercia sua liberdade de expressão ao questionar as urnas eletrônicas — um argumento recorrente em sua retórica desde pelo menos 2014.
Contudo, essa tentativa de reescrever a história se choca com um robusto conjunto de evidências. A delação de Mauro Cid, embora agora contestada pelos advogados do ex-presidente, foi homologada pelo próprio STF e corroborada por outras provas, incluindo mensagens trocadas com militares, gravações de reuniões, rastros documentais e a chamada “minuta do golpe” — um esboço de decreto presidencial para instaurar estado de sítio ou de defesa, o que, na prática, permitiria a suspensão de direitos constitucionais e o cancelamento das eleições.
Golpismo negado, mas evidente
Ao negar a trama, a defesa apela ao argumento da ausência de ação concreta, como se a organização de um plano para abolir o Estado Democrático de Direito pudesse ser ignorada por não ter sido totalmente executada. Trata-se de uma lógica perigosa, descolada do próprio arcabouço legal vigente: o artigo 359-L do Código Penal, incluído pela Lei 14.197/21, tipifica como crime a tentativa de “abolir, por meio de violência ou grave ameaça, o Estado Democrático de Direito, impedindo ou restringindo o exercício dos poderes constitucionais”. A cogitação, se acompanhada de atos preparatórios concretos, pode sim configurar tentativa punível.
Nesse ponto, especialistas em direito constitucional alertam para o revisionismo jurídico e político presente na defesa. “É um erro grosseiro tratar como inócuas reuniões de comando, discussões sobre GLOs (Garantia da Lei e da Ordem) e planos para prender ministros do STF. Há um padrão claro de articulação para ruptura institucional”, afirma Eloísa Machado, professora de Direito da FGV-SP.
A narrativa do “massacre” e o ataque às instituições
Um dos trechos mais reveladores da estratégia bolsonarista é a queixa de que os réus são vítimas de um “ambiente de massacre”. Trata-se de uma inversão retórica já usada por regimes autoritários em diversas partes do mundo: transformar investigados por crimes contra a democracia em supostos perseguidos políticos.
Essa técnica de vitimização do autoritarismo não é nova e já foi descrita por filósofos como Theodor Adorno em Aspectos do Novo Radicalismo de Direita (1959), ao analisar a ascensão do neofascismo nos EUA. Segundo ele, “os demagogos modernos atribuem suas próprias tendências autoritárias a seus inimigos e se apresentam como mártires da liberdade”.
Na prática, o que a defesa de Bolsonaro oferece ao STF é um Brasil alternativo: um país onde nada aconteceu. Onde não houve tentativa de anular eleições, nem convocação de militares, nem ataque aos Três Poderes em 8 de janeiro. Uma ficção jurídica montada para apagar o que se tornou visível à população brasileira e à comunidade internacional: o ensaio de um golpe, liderado por um ex-presidente que se recusava a aceitar os resultados de uma eleição livre.
Contexto histórico e institucional
O Brasil já experimentou, com consequências trágicas, o desmonte da democracia. O golpe de 1964 — também então justificado como “preventivo” e “legal” — mergulhou o país em 21 anos de ditadura, com repressão política, censura e tortura sistemática. A Constituição de 1988, fruto de um processo de redemocratização amplo, foi desenhada justamente para impedir novas rupturas institucionais.
O julgamento de Bolsonaro no STF não é apenas sobre um homem ou seu círculo próximo. Trata-se de uma definição histórica: o Brasil aceitará como legítimo o planejamento de um golpe que, por falta de sucesso, deve ser tratado como irrelevante? Ou reafirmará, pela força do Direito e da democracia, que sequer se pode cogitar o uso da força contra a soberania do voto?
Como afirmou o ministro Luís Roberto Barroso, presidente do STF, em discurso na abertura do ano judiciário de 2023: “Não há anistia para golpe de Estado. O que houve foi uma tentativa de abolir a democracia brasileira. Isso não é liberdade de expressão, isso é crime.”
O risco da impunidade como precedente
A tentativa de transformar um atentado à democracia em exercício legítimo de opinião coloca o Judiciário, a imprensa e a sociedade civil diante de um dilema crucial: tolerar o intolerável é abrir as portas para novos ataques. Se Bolsonaro for absolvido, o que impediria um futuro presidente de repetir — com mais competência e menos hesitação — a mesma estratégia?
A história ensina que democracias morrem não apenas por tanques nas ruas, mas também por interpretações jurídicas convenientes. O Brasil está diante de sua encruzilhada: punir o golpismo ou institucionalizá-lo como opção política legítima.
O que vem agora?
As alegações finais encerram a fase de instrução e são a última oportunidade da acusação e das defesas de apresentar argumentos e provas antes do julgamento.
Uma vez liberado pelo ministro Alexandre de Moraes, o julgamento poderá ser agendado. A data deverá ser fixada pelo presidente da Primeira Turma do STF, ministro Cristiano Zanin. Outros três ministros, que pertencem ao colegiado, também ficarão a cargo do caso: Cármen Lúcia, Luiz Fux e Flávio Dino.
Enquanto relator, Moraes é responsável por conduzir a investigação e deverá ser o primeiro a anunciar o seu voto, que será, então, submetido aos demais ministros. Caso a maioria dos magistrados decida pela condenação, as penas poderão ser determinadas já na mesma sessão.
É improvável, entretanto, que o julgamento termine num só dia. Os ministros podem também pedir vista do processo, o que levaria a suspensão de 90 dias.
As defesas dos eventuais condenados poderiam ainda se pronunciar no STF ou, ainda, recorrer ao próprio tribunal em caso de discordância da decisão do colegiado. Em caso de absolvição, o processo é arquivado, e não há punição.
STF responsabilizou 1.190 pessoas por atos antidemocráticos de 2023
O Supremo Tribunal Federal já responsabilizou 1.190 pessoas por participação nos atos antidemocráticos de 8 de janeiro de 2023. Os números foram divulgados pelo gabinete do ministro Alexandre de Moraes. Nesse dia, as sedes dos Três Poderes foram invadidas e depredadas por apoiadores do ex-presidente Jair Bolsonaro.
Os condenados por crimes mais graves, como tentativa de abolição do Estado Democrático de Direito, golpe de Estado, dano qualificado, associação criminosa e deterioração de patrimônio público, foram 279, e por isso receberam penas mais altas, que chegam a superar os 17 anos de prisão.
Os condenados por crimes mais brandos, por incitação e associação criminosa, foram 359. Apenas dez acusados foram absolvidos.
Ao todo, foram abertas no Supremo 1.628 ações relacionadas ao 8 de janeiro, das quais 518 são relacionadas a crimes graves e outras 1.110 a crimes menos graves.
Entre os condenados, 113 já cumpriram pena, enquanto 112 estão ainda estão presos. Passados mais de 2 anos e meio dos atos violentos, 29 pessoas ainda se encontram em prisão preventiva, ou seja, ainda sem condenação.
Estão em prisão domiciliar 44 pessoas investigadas ou acusadas, com ou sem tornozeleira eletrônica, informou o gabinete de Moraes.
Entre as 1.190 pessoas que o Supremo contabiliza como responsabilizados, estão ainda 552 acusados que firmaram Acordo de Não Persecução Penal com o Ministério Público Federal (MPF), livrando-se dos processos em troca de assumirem a culpa por crimes mais brandos e cumprirem algumas condições estabelecidas pelo Supremo.
Todos os acordos dizem respeito a acusados que estavam acampados em frente a quartéis das Forças Armadas, mas que não há provas de que tenham participado da tentativa de golpe de Estado, de obstrução dos Poderes da República e nem de dano ao patrimônio público, segundo informou o STF, em nota.
Centrão abandona oposição e se alia ao governo contra anistia
Em menos de uma semana, o cenário político em Brasília se transformou radicalmente. O que começou com um vídeo simbólico de apoio ao chamado “pacote da impunidade” — que inclui o fim do foro privilegiado, ampliação das prerrogativas parlamentares e anistia aos condenados pelos atos golpistas de 8 de janeiro — terminou com um recuo generalizado dos principais partidos do Centrão, sob pressão do Palácio do Planalto e da opinião pública.
Na noite do último dia 6, líderes do PL, União Brasil, PP e Novo gravaram um vídeo ao lado do deputado federal Nikolas Ferreira (PL-MG), prometendo pautar as propostas na Câmara. A gravação foi tratada como um aceno claro à base bolsonarista, que horas antes havia protagonizado uma ocupação simbólica da Mesa Diretora da Câmara em protesto contra a prisão domiciliar de Jair Bolsonaro, determinada pelo ministro Alexandre de Moraes, do STF.
O gesto foi parte de uma tentativa de acordo informal com a oposição para desmobilizar o motim. Os deputados que aderiram à manifestação saíram proclamando vitória e se sentindo fortalecidos. No entanto, o ambiente mudou radicalmente já na manhã seguinte.
Desembarque silencioso e sinalização ao Planalto
O presidente da Câmara, Hugo Motta (Republicanos-PB), rapidamente desautorizou o acordo, negando ter dado aval a qualquer tipo de negociação. Pouco depois, passou a defender a punição dos parlamentares que invadiram a mesa da Casa, sinalizando alinhamento com os setores mais moderados.
Ainda na quinta-feira (7), o líder do PSD na Câmara, Antonio Brito, o senador Otto Alencar (PSD-BA) e os três ministros do partido no governo participaram de um almoço fora da agenda oficial com o presidente Luiz Inácio Lula da Silva no Palácio da Alvorada. O encontro contou ainda com a presença do presidente do PSD, Gilberto Kassab, que foi cobrado pessoalmente a se posicionar contra a anistia e a favor da estabilidade institucional.
Isolamento do PL e do Novo
Na reunião de líderes de ontem (13), o recuo foi completo. Representantes da maioria das legendas afirmaram não haver acordo sobre a pauta de votação. O PL e o Novo ficaram isolados na defesa da proposta — e o PSD, agora mais próximo do Planalto, negou ter participado de qualquer negociação prévia. Antonio Brito afirmou que não houve, em nenhum momento, autorização para fechar um acordo sem a presença de Hugo Motta.
O episódio expôs mais uma vez as contradições do Centrão, que flutua entre o bolsonarismo e a governabilidade, e evidenciou a fragilidade do apoio a propostas que, sob pressão, revelam seu potencial de desgaste público.
Mudança de foco e controle da narrativa
Aproveitando a instabilidade, Motta passou a defender uma nova pauta, usando como gancho a polêmica provocada por vídeos do youtuber Felca sobre exploração de crianças e adolescentes nas redes sociais. “Nesse Brasil polarizado só se fala de anistia e foro. As bolhas adoram esse assunto. Temos que mudar a pauta”, disse um líder ao blog da jornalista Andréia Sadi (g1).
Apesar do recuo, os temas do “pacote da impunidade” não foram enterrados. Parlamentares admitem que o fim do foro e o aumento das prerrogativas interessam a diferentes espectros políticos. No entanto, nenhum partido deseja vincular seu nome a um acordo costurado sob pressão e com viés de autoproteção parlamentar em meio a investigações sensíveis.
Kassab entre Lula e Tarcísio
Gilberto Kassab, peça-chave do tabuleiro, vive um dilema político. Embora o PSD ocupe três ministérios no governo Lula, ele mantém cargo no governo de São Paulo, comandado por Tarcísio de Freitas (Republicanos), aliado direto de Bolsonaro. Kassab trabalha nos bastidores para ser vice na eventual candidatura de Tarcísio à Presidência em 2026 — uma movimentação que exige equilíbrio entre alianças pragmáticas e fidelidade ideológica.
“Se Kassab não fizer gestos, as ambições dele, que já não são fáceis, ficam impossíveis”, afirmou à imprensa uma fonte próxima às negociações.
Em Brasília, o clima muda rápido — e, como sempre, as nuvens carregadas não anunciam apenas tempestades políticas: elas revelam a luta contínua pelo controle da narrativa, do poder e da memória institucional. O recuo do Centrão, por ora, adia a votação do pacote, mas o jogo está longe de acabar.










