Bahia, Internacional e Vasco da Gama foram os únicos clubes, entre os grandes do futebol brasileiro, a lembrarem os 60 anos do golpe de Estado que destituiu o presidente João Goulart da presidência do Brasil, dando início a 21 anos de ditadura militar.
O Colorado, conhecido como Clube do Povo no Rio Grande do Sul, rememorou o triste episódio em tom crítico.
“Há 60 anos, o Brasil vivia uma das datas mais tristes de sua história. Hoje e sempre, é nosso dever lembrar para jamais repetir: Ditadura nunca mais!”, afirmou o time gaúcho, em sua conta oficial no X (antigo Twitter).
Durante a ditadura, o time gaúcho teve um ex-jogador, Orandir Ortassi Lucas, conhecido como Didi Pedalada, destaque do Inter nos anos 1960 e 1970, que se tornou agente do Departamento de Ordem Política e Social (Dops).
A fama de Didi Pedalada seria fundamental para que esse fosse identificado como um dos agentes que sequestraram o casal uruguaio Lilián Celiberti e Universindo Rodríguez, além de seus dois filhos, Camilo e Francesca em Porto Alegre.
A ação estava vinculada à Operação Condor, que reuniu os esforços de ditaduras do Cone Sul (Brasil, Argentina, Uruguai e Chile) para combater opositores políticos. Didi Pedalada foi reconhecido por um jornalista, o que ajudou a dar publicidade ao ato. O caso está relatado em detalhes no livro “Operação Condor: o sequestro dos uruguaios”, do jornalista Luiz Claudio Cunha.
Arquirrival do Inter, o Grêmio ignorou a data mesmo tendo sido o pioneiro a ter uma torcida que foi reprimida pela ditadura militar. A Coligay, que existiu entre 1977 e 1983, foi a primeira torcida organizada gay do Brasil. O grupo, que contava com advogados para defendê-lo, foi vigiado pela Delegacia de Costumes da época.
Vasco
O Vasco da Game destacou seu repúdio à ditadura lembrando a música “O bêbado e o equilibrista”, composta por Aldir Blanc, torcedor do clube, que morreu de Covid-19 em 2020.
A letra lembra fatos daquela época: “Meu Brasil/ Que sonha com a volta do irmão do Henfil/ Com tanta gente que partiu/ Num rabo de foguete/ Chora/ A nossa Pátria mãe gentil/ Choram Marias e Clarisses/ No solo do Brasil.”
O irmão do cartunista Henfil era o sociólogo e ativista Herbert de Sousa, que esteve exilado durante a ditadura e retornou ao país com a abertura política, em 1979. Já Maria e Clarisse eram respectivamente esposas do operário Manuel Fiel Filho e Vladimir Herzog, ambos torturados e mortos pela repressão política.
Bahia
O Bahia, clube conhecido por posicionamentos políticos nos últimos anos, exibiu no X um cartaz exaltando a democracia e lembrando os 60 anos do golpe de Estado. Entre as hashtags exibidas pelo Tricolor de Aço está Nunca Mais, conhecido slogan argentino para repudiar a ditadura local, que também foi utilizado no Brasil, pelos opositores do regime militar.
Galo ausente
O Atlético-MG tem como seu principal ídolo na história o artilheiro Reinaldo, astro do clube nos anos 1970 e 1980.
O atacante ficou conhecido por comemorar gols com os punhos cerrados, imitando gesto dos Panteras Negras, que ficaram famosos no mundo esportivo pelo protesto dos velocistas norte-americanos Tommie Smith e John Carlos, no pódio dos 200 m nos Jogos do México 1968.
Reinaldo usava esse gesto para mostrar seu repúdio à ditadura militar. Foi o que fez na Copa do Mundo de 1978, quando marcou o gol de empate do Brasil contra a Suécia.
Ativista político até os dias de hoje, recentemente Reinaldo foi o principal nome em campo em amistoso para lembrar os cinco anos da tragédia de Brumadinho, quando o rompimento de uma barragem da Vale deixou 272 mortos.
Apesar de toda essa identificação com a oposição à ditadura militar, o Galo deixou passar em branco a data.
Ceará esquece
O Ceará foi o clube em que jogou Nando, irmão de Zico e único jogador de futebol conhecido que foi preso e torturado durante a ditadura militar. Nando havia participado do Programa Nacional de Alfabetização (PNA) durante o governo de João Goulart. A iniciativa utilizava o método Paulo Freire, patrono da educação brasileira, para alfabetizar adultos.
Após o golpe de Estado, Nando se viu acuado e decidiu tentar a carreira no Ceará. O bom desempenho por lá lhe rendeu a contratação pelo Belenenses, em 1968. Em Portugal acabou perseguido por agentes da Polícia Internacional e de Defesa do Estado (Pide), órgão repressivo de outra ditadura, de Antonio Salazar.
Nando decidiu voltar ao Brasil, mas acabou preso no Rio de Janeiro. Ele acredita que a perseguição a ele se estendeu aos irmãos Edu, que deixou de ser convocado para a Copa do Mundo de 1970, e Zico, que mesmo sendo o principal jogador da seleção olímpica não foi chamado para os Jogos de Munique 1972.
Zico quase desistiu da carreira por causa dessa frustração. Sem ele, o Brasil acabou em último lugar no Grupo C das Olimpíadas, que tinha também Hungria, Dinamarca e Irã. Os húngaros acabaram com a medalha de prata.
Mesmo com esse histórico de ter tido como destaque nos anos 1960 o único jogador brasileiro preso pela ditadura militar, o Ceará ignorou os 60 anos do golpe.
Democracia Corintiana
Maior ídolo do Corinthians nos anos 1980, Sócrates ficou conhecido por sua oposição ao regime militar e por liderar o movimento da Democracia Corintiana, juntamente com Casagrande e Wladimir.
Ficou famosa a faixa utilizada pelo time na entrada ao gramado para enfrentar o São Paulo na final do Paulistão de 1983: “Ganhar ou perder, mas sempre com democracia”. Na ocasião, o Corinthians ganhou o bicampeonato estadual, após vencer por 1 a 0, gol de Sócrates.
Apesar dessa ligação forte com o movimento das Diretas Já!, que pedia, em 1984, eleições livres para presidente do Brasil, o Corinthians foi outro clube a ignorar os 60 anos do golpe de Estado.
Nesta segunda-feira, porém, o time do Parque São Jorge resgatou o tema com atraso, ao destacar a inauguração da rua Sócrates, na capital francesa, próximo ao local da Vila Olímpica dos Jogos de Paris 2024.
“No último fim de semana, a Rua Dr. Sócrates, na Vila Olímpica de Paris, foi inaugurada! Uma honra acompanhar o legado do Dr. sendo espalhado ao mundo por meio de seus ideais. Um craque da bola, um ídolo corinthiano, um ídolo do Brasil!”, escreveu o clube no X no dia 1º de abril, que além de ser o Dia da Mentira também é chamado por críticos da ditadura como o verdadeiro dia do golpe de Estado de 1964.
Entre as hashtags da postagem do Corinthians está o Ditadura Nunca Mais, um dos principais slogans que havia sido compartilhado nas redes sociais na véspera (31 de março).