Já prevista em lei, a assistolia fetal, um procedimento médico que consiste na injeção de produtos químicos para interromper a gestação, foi o tema de um debate articulado por parlamentares bolsonaristas no Senado para reforçar os ataques ideológicos ao aborto e demonizar os seus defensores. Em tela, o projeto de lei 1904/24, conhecido como PL do Aborto, com o qual os conservadores pretendem proibir toda e qualquer prática de aborto, inclusive os já autorizados por lei.
A tentativa, entretanto, melou. Uma das causas foi a intervenção demolidora de uma senadora sul-mato-grossense, Soraya Thronicke (Podemos/MS). Ela deixou colegas do PL, Republicanos e do Novo arriados, sem argumento para continuar o circo, erguido pelo senador Eduardo Girão (Novo/CE), com postagens nas redes sociais atacando o PT, o presidente Lula e mulheres favoráveis ao direito de escolha sobre o próprio corpo.
Girão postou nas redes sociais as imagens de Lula e de um feto, com uma frase do presidente dita em entrevista. Nela, Lula indaga porque uma menina é obrigada a ter um filho de alguém que a estuprou. O bolsonarista atacou, dizendo que a máscara de Lula havia caído, revelando “princípios e valores degradados”. E reforçou: “Na batalha dramática pela vida, vemos a guerra de narrativas com semânticas que tentam escamotear o espírito do PL 1904/24, cujo objetivo é evitar a morte do bebê viável para prática cruel da assistolia fetal, que o próprio Conselho Federal de Medicina Veterinária proibiu em eutanásia de animais”.
TEATRO DOS HORRORES
Antes desse pronunciamento, Girão e os bolsonaristas montaram no plenário do Senado uma espécie de “teatro dos horrores” para dramatizar a pregação anti-abortista. Levaram a atriz e contadora de histórias Nyedja Gennari, que diante da tribuna fteatralizou interpretando um feto sendo abortado, e implorando, aos gritos: “Não! Não acredito, essa injeção, essa agulha não! Quero continuar vivo! Não façam isso”!
A atriz – ex-assessora de deputado bolsonarista – foi aplaudida por Girão e demais fiéis de Jair Bolsonaro, entre os quais os senadores Marcos Rogério (PL-RO) e Damares Alves (Republicanos-DF) e os deputados Bia Kicis (PL-DF), Jorge Seif (PL-SC), Chris Tonietto (PL-RJ) e General Girão (PL-RN). No dia seguinte, Soraya contra-atacou. Primeiro, de forma irônica, sugerindo que a atriz teatralizasse um estupro:
“Queria o contato daquela senhora que esteve encenando aquilo que nós vimos. Sabe por quê? Porque eu quero ver ela encenando a filha, a neta, a mãe, a avó, a esposa de um parlamentar sendo estuprada. Eu quero que ela faça a encenação do estupro agora. Por que não? Se encenaram um homicídio aqui ontem, que encenem o estupro”, desafiou Soraya. Ela ainda questionou se o estupro ocorresse com a filha de um parlamentar com 10 ou 20 anos de idade, ou com a esposa, se o político denunciaria a familiar e a mandaria para a cadeia.
CORPO DOS HOMENS
A senadora lembrou que o SUS “banca vasectomia para quem quiser fazer”, e que ninguém “delibera sobre o corpo dos homens”. Girão e os seus parceiros de circo não devolveram o questionamento à altura, optando por manter a defesa radical do PL 1904, que equipara o aborto – após a 22ª semana – ao crime de homicídio. Com a repercussão negativa de seu ato, a atriz gravou um vídeo afirmando que sua apresentação tinha relação com a assistolia fetal e em nenhum momento estava associada à PL do Aborto. “Em nenhum momento minha história foi para agredir uma mulher”, explicou-se.
Atualmente contadora de histórias, Nyedja Gennari, de 48 anos, trabalhou no Senado entre 2019 e maio de 2023 no gabinete do senador bolsonarista Izalci Lucas (PL). Seu cargo era auxiliar parlamentar sênior, cuja remuneração bruta de R$ 7,1 mil. O PL está com seu andamento travado, devido à maciça reação contrária de diversos segmentos da sociedade.
É CONTRA
Soraya Thronicke pede que a questão seja avaliada com sensatez e sem ser ideologizada. “Não sou a favor do aborto. Mas não podemos permitir que mulheres e meninas paguem 20 anos de prisão por escolherem não carregar um filho oriundo de estupro, por não carregar um bebê que sofrerá com uma doença avassaladora até a morte e por não carregar um bebê que pode resultar na perda de sua própria vida”. A legislação atual já proíbe o aborto, sendo possível realizar o procedimento apenas em casos de estupro, anencefalia e em casos de risco de vida da gestante.